Apesar da pouca idade, a jovem araçatubense Lívia Castilho Gennari, 18 anos, tem muita história para contar do que viveu nos últimos dez meses. Ela é intercambiária do Rotary e está na Índia desde setembro do ano passado. Neste período, aprendeu novas línguas e conviveu com uma cultura completamente diferente da sua. O fator inesperado foi a pandemia do novo coronavírus, que obrigou o país a adotar o lockdown e trouxe angústia e ansiedade para a adolescente, que enfrenta, agora, dificuldades para voltar ao Brasil.
Ao conversar com Lívia, a impressão é que a jovem está dividida entre deixar os amigos e a família que a adotou na Índia e voltar para o conforto de sua casa, em Araçatuba, para matar a saudade dos pais e da sua terrinha. Ela teve a oportunidade de voltar para o Brasil, em fevereiro deste ano, mas decidiu ficar para completar o seu intercâmbio, que iria até julho, pois imaginava que a pandemia do novo coronavírus fosse passar logo e não esperava viver o lockdown imposto pelo governo indiano.
Lívia está na cidade de Coimbatore, sul da Índia, para onde foi com o objetivo de cursar o terceiro ano do ensino médio, aprimorar o inglês e viver uma experiência única. A cidade, no interior da Índia, tem perto de 2 milhões de habitantes e ainda possui ruas de terra e de pedra, onde é possível ver de tudo, desde vacas até carroça puxadas por bois, além de carros e motos.
A jovem e sua família, no entanto, não contavam que a pandemia fosse se agravar, com medidas drásticas para conter o avanço da doença. Na Índia, o lockdown teve início no dia 12 de março, com a proibição de sair de casa (a polícia bate nos que se aventuram a sair), fechamento de escolas e cancelamento de voos, inclusive o que a traria de volta ao Brasil, em cinco de julho. Rigorosos com as medidas de isolamento social, os indianos só deverão abrir os aeroportos em setembro.
ANGÚSTIA
A angústia de não saber como e quando voltaria para o Brasil, sem voos previstos para o retorno dos brasileiros, levou a família de Lívia a procurar o Itamaraty. Nessa sexta, o órgão do Ministério das Relações Exteriores entrou em contato com a mãe da jovem, a analista Adriana Guimarães de Castilho Gennari, para informar que há voos de três companhias com voos em diversas partes do mundo para repatriar brasileiros.
À família, caberá a compra dos bilhetes para um dos voos previstos para o Brasil. O primeiro está marcado para 21 de maio, mas Lívia ainda não sabe em qual deverá embarcar. “É uma mistura de emoções saber que vou poder voltar para o meu país, mas ao mesmo tempo sofro quando penso que vou ver os amigos e a família que fiz aqui na Índia só daqui a alguns anos”, descreve a jovem, que voltará com experiências jamais pensadas em seus 18 anos de existência.
CASAMENTOS
E história é o que não falta para a adolescente contar. Ela foi a sete casamentos indianos, cuja comemoração dura até sete dias, com muitos enfeites, rituais, música e festa, muita festa. Nestas ocasiões, pôde usar o sári, tradicional vestimenta indiana que, segundo Lívia, nada mais é do que um tecido que envolve todo o corpo.
“Os casamentos são lindos, tem bastante enfeite. Se os noivos são cristãos, põem anel e colar. Se são hindus, colocam um colar na mulher um anel no dedo do pé do homem”, descreve. “Eles fazem um ritual com frutas e fogo, para purificação, depois colocam dinheiro enrolado no noivo, jogam pó no casal, como se fosse uma proteção, e a mulher, quando vai casar, faz uma tatuagem de hena nos dois braços, é muito bonito”, relata.
A menina de 17 anos que chegou à Índia falando poucas palavras em inglês, hoje é fluente no idioma e até arrisca algumas palavras e frases em tâmil, uma das línguas oficiais do país. Mas confessa que no começo não fácil, pois a primeira família que a recebeu era muito tradicional e ela enfrentou dificuldades de adaptação.
FAMÍLIAS
Além do choque cultural, ao encontrar costumes, religião e comida bem diferentes do Brasil, a adolescente teve de encarar o convívio com uma família (a primeira que a recebeu) que não a tratava bem. “Acho que tiveram preconceito, pois são uma família indiana bem tradicional”, acredita. Ela conta que, nesta casa, não podia entrar na cozinha nem dormir no próprio quarto se menstruasse.
Meses depois, foi acolhida por uma família que ela considera como sua. Seu “pai” é hindu e a “mãe, cristã. Os dois são donos de uma escola de yoga, praticam meditação, têm um filho que está em Três Lagoas (MS), também intercambiário do Rotary, e outro filho, de 24 anos, que já virou “irmão” de Lívia. “Eles são incríveis, me tratam muito bem, usam muito o poder positivo da mente, fazem yoga e meditam”, contou.
A afinidade foi tanta com a segunda família que ela nem quis ir para a terceira casa (os intercambiários ficam, geralmente, com três famílias diferentes). Onde está, ela se sente como um membro da família. Limpa a casa, lava a louça e até põe roupa para lavar. Nesta casa, os indianos também a têm como filha, tanto que fizeram questão de sua presença na foto que tiraram para o álbum de família.
COMIDA
Ao completar 18 anos, no dia cinco de abril, ganhou uma festa de aniversário, apenas com a presença dos “pais” e o “irmão”, por causa do lockdown, e pôde aprender ainda mais sobre os costumes indianos. Nestas ocasiões, eles cortam uma parte do bolo e dão ao aniversariante, que oferece com sua mão direita, um pedaço a cada convidado.
A comida, aliás, é um capítulo à parte, segundo Lívia. É tudo muito picante e os indianos só comem com a mão direita. “Até hoje não me acostumei muito pelo fato de tudo ser muito picante, mas gosto de alguns pratos e até aprendi para fazer para minha família brasileira”, diz. Seu prato predileto se assemelha a uma esfirra, mas tem massa de amido, leva frango e cebola. Sobre os doces indianos, afirma gostar de todos, especialmente um que lembra leite ninho.
CHOQUE CULTURAL
O que mais chocou a adolescente em sua estada na Índia foi o machismo. Lá, as meninas não podem se sentar ao lado dos meninos nem conversar com eles. Namorar, então, é impensável. Ela tem amigas de muçulmanas, hindus e cristãs, mas a regra vale para todas. Tanto que, segundo ela, uma de suas amigas foi ameaçada de morte pelo próprio pai quando descobriu que a menina estava de paquera com um colega da escola.
A rigidez também vale para o vestuário. As meninas não podem usar roupas decotadas e curtas. Para sair, só de calças e blusas comportadas. Mas as bijuterias e maquiagem são liberadas. As indianas usam muitos anéis, pulseiras e brincos e fazem um delineado grosso no olho que chama a atenção.
Outro choque que a menina sofreu foi ao saber que os noivos não escolhem com quem vão casar, a maioria dos casamentos é arranjada. “Isso me marcou muito”, disse.
Lívia conta que também ficou chocada ao assistir a um julgamento em que quatro homens foram condenados à forca. Na Índia, estupradores têm esta pena.
O RETORNO
Quanto a voltar para o Brasil, a adolescente diz estar ansiosa, ao mesmo tempo em que sabe que sentirá saudade de sua família indiana. No entanto, o que mais pesou para sua decisão foi uma infecção renal que sofreu, há cerca de duas semanas.
“Passei dias com dor nas costas e tomando dipirona. Quando ficou insuportável, me levaram para um hospital, fiz um ultrassom e constataram a infecção, mas ainda sinto desconforto ao urinar”, relata. A mãe, Adriana, conta que nem dorme direito de preocupação com a filha.
Adriana acredita que a infecção esteja relacionada à pouca água que a filha ingere. “Lá, eles fervem a água antes de beber e tomam água quente”, conta a mãe.
Segundo Adriana, o Itamaraty informou que irá liberar seis aviões, de três companhias, para repatriar os brasileiros que desejam voltar ao País em meio à pandemia do novo coronavírus.
A família já está em contato com as três companhias indicadas pelo órgão do Ministério das Relações Exteriores para verificar as datas dos voos e a possibilidade de Lívia embarcar já no primeiro, na próxima quinta-feira (21).
Este voo sairá de Mumbai com destino a Nova Deli, depois passará por Londres e seguirá para São Paulo. “É um avião de resgate fretado pelo Itamaraty para trazer brasileiros do mundo todo”, conta a mãe.